sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Da Política das Pulgas (e dos investimentos no Protocolo de Manchester)



Trabalhar como médico em uma Unidade de Saúde não é tarefa fácil. Tudo se torna ainda mais difícil quando este médico procura conhecer o funcionamento dessa imensa rede “descentralizada”.
Recentemente estava em meu posto de saúde quando fui surpreendido com a chegada de um computador modernóide, equipado com um medidor de saturação de oxigênio e um termômetro auricular (como consta na foto acima)! Um técnico prontamente instalava em um bairro miserável de uma região mineradora/metalúrgica tão rica o que seria, segundo a Secretaria Estadual de Saúde, os meios para aplicação de um protocolo que “facilitará a estruturação da rede e o encaminhamento do usuário. A nossa meta é que todo o atendimento realizado seja baseado na necessidade real do usuário, e não mais na ordem de chegada”.

Ante ao que aconteceu, à minha surpresa, resolvi dialogizar mais a respeito do tão curioso fato, e compartilho com vocês.

O PSF, programa iniciado no então governo FHC pelo ministro Henrique Santilho, no ano de 1994 é uma estratégia que ainda não se estabeleceu por questões primárias, relacionadas mesmo à política macro que em nada se orienta para a socialização plena do acesso à saúde (Universalidade, um dos três princípios doutrinários do SUS). Nunca se investiu tanto na atenção secundária e terciária à saúde quanto nos tempos de hoje. Isto em tempos que o PSF ainda nem dispõe de capital humano para seu funcionamento pleno.

A academia, inundada de interesses escusos, teima em formar médicos “despreparados” com a sugestão implícita que sua formação se concluirá na “especialização”. Os professores cada vez mais especializados depositam nos seus tutelados o conhecimento fragmentado da medicina segmentar, tão consagrada em nossos livros de estudar pescoço, outros de estudar rins, fígados, e por aí vai.

A proposta de adequação curricular iniciada na década passada trouxe mudanças modestas nas grades (com trocadilhos, prisões) curriculares de muitas faculdades, cada vez menos abertas à livre iniciativa da criatividade do aluno, verdadeiros centros de formação de técnicos para operarem os equipamentos ultra tecnológicos que a indústria de insumos joga aos montes no mercado (que é a mesma que vende medicamentos, que é a mesma que investe em pesquisas na cura de doenças).

Além das modificações modestas das Grades Curriculares em muitos casos pudemos presenciar o que muitos chamaram de “Inserção Precoce” dos alunos aos sistema de saúde. O que, em termos gerais soa muito bonito, mas na prática resultou em Inserção Precoce à Doença. Pensam os diretores de ensino de diversas faculdades que colocar um estudante em contato com um tuberculoso logo no seu primeiro ano de estudo trará precocidade à sua capacidade de entender o funcionamento do serviço. Sem entender o processo histórico-social-político-cultural que proporciona a apresentação deste moribundo à sua frente este pobre calouro não trará muitos benefícios a outros tuberculosos quando em seis anos já estiver clinicando. Tratará “a doença com o medicamento”, sem saber que diversos outros remédios para este mal se encontram fora das drogarias (hoje em dia, verdadeiros shoppings). É mais ou menos como foi feito em uma tradicional escola particular de medicina de Belo Horizonte: no mesmo ano que tiraram a disciplina de História da prova do vestibular implantaram no currículo médico a disciplina “História da Medicina”.

Essas insanidades todas nos fazem acreditar cada vez menos na capacidade geradora de recursos humanos para aplicabilidade da Política Nacional de Atenção Básica. Não que eu queira sugerir, ao justificar as deficiências da formação médica, que a figura do médico é a responsável pelo sucesso desta política. Mas poderia, sem sombra de dúvidas, afirmar o contrário: que a figura do médico é responsável direta pelo insucesso atual desta política!

Fala-se muito na dificuldade em conseguir profissionais médicos para trabalhar nas unidades básicas de saúde, porém eu nunca vi alguém questionar na dificuldade de se captar médicos CAPACITADOS para tocarem tão importante Programa. A moda é, na falta de escolha, empregar médicos recém formados para trabalho temporário, que durará até a sua aprovação na residência médica (nome eufemístico para vestibular de “doutores”). O grande problema é que os resultados dessa efêmera passagem pela Unidade de Saúde não são temporários. Estes médicos despreparados prestam verdadeiro desserviço à população local, ao relacionamento interno da equipe e à cultura da boa prática clínica. Esses colegas, centralizadores – com a conivência dos gestores que não conseguem outro para o seu lugar – monopolizam o trabalho da equipe na figura de sua pessoa, com suas singularidades muitas vezes nada atrativas. É muito comum ver pacientes dizerem que não se consultarão no posto “x” porque lá o médico é “muito ignorante”. Ora, e o restante da equipe? Enfermeira, técnicos, dentista, agentes de saúde... Estes todos também o são?

A lógica do funcionamento da saúde é centrada na figura do médico. O PSF reverbera isto. Trouxemos para o trabalho descentralizado da atenção básica – que busca medidas de prevenção com práticas de educação em saúde – a figura do médico secundarista! Este médico, apesar de trabalhar num programa que tem suas raízes em preceitos contra-hegemônicos, graduou-se na mais pura escola médica doença-centrada. Não aprendeu de forma prática o funcionamento de seu Sistema de Saúde, pois foi rapidamente seduzido pelo mágico poder da cura (e esta, claro, pressupõe a doença). A este estudante não fora apresentado Paulo Freire, pois o tempo lhe era escasso na rotina degradante de decorebas e algoritmos. Sem conhecer Freire este médico trabalhará no PSF sem entender que “para intervir numa realidade é necessário conhecê-la”. Estes egressos trabalharão num cargo que é tanto pedagógico quanto técnico, mas não têm linha pedagógica alguma a seguir! E no entanto, a equipe de saúde, apesar de maioria em número, paradoxalmente deve acolher este doutor que definirá a práxis da equipe, mesmo sem prática alguma.

O PSF vai sendo tocado pra frente! Entra médico e sai médico, “tudo continua como dantes no quartel de Abrantes”. Exceto com os novos computadores que chegaram. Vamos aos computadores...

Minas Gerais é o primeiro estado brasileiro a implantar, na atenção básica, o Protocolo de Manchester. Trata-se de uma nova estruturação dos serviços de urgência e emergência capaz de otimizar a gestão do fluxo de pacientes e, além de tudo, permitir que esse mecanismo seja auditado. Este protocolo foi aplicado em modelo vanguardista no Hospital de Pronto Socorro João XXIII e posteriormente em outros instituições do Belo Horizonte.

Bom, mas aí vem a pergunta: Por que implantar na atenção básica um modelo que foi criado para a urgência e emergência? Ouso dizer que se o paciente grave chegou a um Posto de Saúde ele já está no local errado para seu atendimento!

À unidade básica de saúde cabem os casos de atenção primária, prevenção e promoção de saúde. Qual o interesse em protocolizar o meu afluxo de pacientes numa lógica criada para o paciente que necessita de atendimento emergencial?

A lógica, meus amigos, é a mesma que rege nossas vidas como um Grande Irmão (falo do livro de George Orwell). É a lógica que joga às mãos dos incapazes de receber com afeto seus pacientes no posto de saúde um computador frio que, em formato de extrato de banco, lhe dirá qual é o tempo que sua doença pode esperar.

Na Resolução 2334 da SES, de junho de 2010, que “define o valor do incentivo financeiro por município da Implantação do Protocolo de Classificação de Risco em Urgência e Emergência – Sistema Manchester”, é mostrado que o estado de Minas gastou R$ 25.856.278,70 para a aquisição dos kits contendo aparelho de computador, oxímetro, e termômetro auricular, a serem instalados em 3065 unidades de saúde (um custo de R$ 8.432,98 por kit!!!). Numa matéria do blog “Fax Sindical” é revelado que o estado de Minas gastou 48 milhões de reais com a aquisição do software da empresa ALERT. As negociações a cerca deste programa foram iniciadas e seladas entre 2007 e 2008 e, de acordo com o que fora combinado entre estado e fornecedora, havia a necessidade de aplicação do programa (no mesmo mandato, pressuponho). A forma de resolver tal impasse é facilmente entendida num documento de março de 2010, onde a Secretaria Estadual de Saúde, através da Superintendência de Gestão, na figura da Gerência da Tecnologia da Informação publica um “Termo de Referência”, subtitulado:


REGISTRO DE PREÇOS PARA FORNECIMENTO, DISTRIBUIÇÃO E INSTALAÇÃO DE ATÉ 4.000 UNIDADES DE TRIAGEM PARA A CLASSIFICAÇÃO DE RISCO CLÍNICO DE PACIENTES NOS TERMOS DO PROTOCOLO DE MANCHESTER.

Neste documento lê-se:

“Desde janeiro do ano de 2008, após a aquisição das licenças do sistema de classificação de risco denominado ALERT Manchester pela SES/MG, a Coordenação Estadual de urgência e Emergência vem buscando soluções para a aquisição, distribuição, instalação e homologação dos equipamentos necessários para a operação do sistema de informação e coleta dos parâmetros clínicos, necessários para a classificação de risco clínico dos pacientes, segundo as diretrizes do Protocolo de Manchester.
Nesse sentido, a Coordenação de Urgência e Emergência iniciou vários processos de compra dos itens acima referidos, esperando com isso solucionar o problema de equipamentos e partir para a implantação do sistema de classificação de risco, nos 4.000 pontos, de atenção à saúde, previstos no Projeto da Rede de Urgência e Emergência, bem como no contrato firmado com a empresa ALERT.”


Fizemos o caminho inverso! Que se comprem equipamentos para implantar o software já adquirido. Mas e a necessidade do software, quando foi discutida? Se a justificativa é “reduzir o tempo de espera” devo salientar que isso passa muito mais por uma política local de acolhimento que pela aquisição de máquinas!

Com ele, a atenção estará focalizada nos casos que exigem atendimento mais rápido e não mais na ordem de chegada do paciente.” Ora, e quem disse que a ordem de chegada deve ser determinante da prioridade no atendimento? Em minha Unidade implantamos outro modelo, um pouco menos tecnológico, chamado AGENDA DE PAPEL, que me permite gerenciar minhas vagas e, durante o dia-a-dia, reservar tempo para o atendimento dos casos agudos.

Há uns anos o Ministério da Saúde lançou a Política Nacional de Humanização na saúde (prova cabal de que nos reconhecemos animais a serem humanizados). Dentro desta política havia uma cartilha para melhoria das práticas de acolhimento. Lá está escrito o que todo profissional da saúde deveria saber desde sempre, que o “acolhimento não é um lugar, ou uma sala, é uma conduta”. O tempo de espera, bem como a forma e a condição que este paciente deverá esperar, é trabalhado pela equipe sob a égide de preceitos éticos e de acordo com a capacidade de operacionalização do serviço local. Um computador, no meu posto que no ano de 2011 ainda não conta com internet, é um objeto desnecessário! Num posto onde não tenho carro para fazer visitas domiciliares um oxímetro é perfeitamente dispensável. Onde não há disponibilidade de D.I.U. (dispositivo intra-uterino) e freqüentemente falta captopril (medicamento básico para o tratamento de Hipertensão Arterial) não é necessário um termômetro auricular! Num estado desigual como o nosso 73 milhões de reais jogados fora com aparato tecnológico soam como deboche aos moradores de um bairro que não tem nem mesmo local para se fazer caminhadas. Um bairro que não tem praças, que convive com esgoto a céu aberto, onde falta água potável e sobram bares e bocas de fumo!

Esta realidade também traduz a lógica do Grande Irmão, nosso provedor. Há que se haver pobreza para se gastar com ela! Eduardo Galeano diz que “o Estado neoliberal é como uma stripper que não tira a calcinha” Assim o Estado foi historicamente se despindo de suas responsabilidades, jogou à platéia os serviços básicos, o direito à exploração da terra e à expropriação dos que dela necessitam, mas manteve consigo, como única peça, o dever de assumir que tudo isto aconteça com ordem, sob poder de polícia, com aparato legal montado. Este Grande Irmão investe no que é necessário para poucos em nome do desmazelo irônico dispensado à grande massa.

Agora poderei dizer aos meus pacientes analfabetos que “segundo o protocolo de Manchester a senhora deve aguardar 2 horas”! Grande evolução na minha relação com meus pacientes...

Para finalizar o que já está longo demais, lembro aqui de uma historinha que ilustra muito bem o que eu não conseguiria explicar sucintamente:


Diz a estória que um médico muito antigo se aposentara e em seu lugar o próprio filho, recém formado em medicina, assumira consultório particular, único local de atendimento médico de toda a região. Ao iniciar seus trabalhos o jovem médico recebeu a visita de vários pacientes que sofriam de coceira crônica, uns na nuca, outros na virilha...
Conversando com os pacientes os mesmo referiam que há anos – e alguns há décadas – tratavam com seu pai que lhes receitara pomadas, comprimidos, xaropes e outros medicamentos que surtiam efeito passageiro.
Ao examinar melhor um paciente descobriu uma pulga em sua nuca e, ao retirá-la constatou que o mesmo parou de coçar, solucionando assim, definitivamente, seu problema. O mesmo ocorreu com vários e vários outros pacientes. O médico, feliz com a sua descoberta clínica foi prontamente à capital onde seu pai morava em confortáveis leitos para dar-lhe a boa nova. Ao contar para o pai foi duramente reprimido pelo velho que o disse:
- Você arruinou sua carreira! Graças a estas pulgas pude pagar sua faculdade!


Esta é a política de saúde do nosso Big Brother: a política das Pulgas!

8 comentários:

  1. Muito bom.Excelente reflexão. É o que vemos a todo momento em nosso país. Estradas que ligam nada a lugar nenhum. Pontes no meio do nada. Computadores em escolas sem piso, merenda escolar, etc. Temos de nos mirar nos recentes descontentamentos que tem ocorrido no oriente. Será que também não estamos em um regime ditatorial no Brasil? A quanto tempo Sarnei e seus asseclas estão no poder? Votamos em um senador e vemos outro, que não recebeu nenhum voto, assumir em seu lugar. E por ai vai...Joimar

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  2. Grande Jeremias,
    Computadores estilo "jornada nas estrelas" aparecem bem nas propagandas eleitorais, enquanto que as tecnologias freireanas, tão mais apropriadas na questão da atenção primária e para solução do processo de trabalho , não saem tão bem na foto. Acho que a informática pode vir, sim, com outro enfoque, e depois de que se tenha investido em tudo o que realmente é importante - acolhimento, ambiência, equipe, vínculo, pedagogia, controle social...

    Um carro pode ter computador de bordo e isso é legal, mas desde que tenha rodas, volante e... bons condutores e passageiros.

    Abraços! André Baião
    P.s: to divulgando o texto viu?

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  3. Parabéns, Tiago Jeremias, por acreditar em utopias comprometidas com o BEM COMUM e com a defesa da interesse público!
    Ilara Hämmerli

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  4. Tiago Jeremias, parabéns pela reflexão. Estou escrevendo minha dissertação exatamente sobre esta temática e gostaria de pedir sua autorização para utilizar fragmentos do texto (com a devida citação). Desde já agradeço. Danielle Moreira

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    1. Use o texto ou os trechos à sua vontade, Danielle! E mande depois a dissertação que me interessei muito em lê-la!
      Hasta siempre!

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    2. Obrigada! Quando finalizar a dissertação entro em contato com você. Até logo!

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  5. Olá Tiago Jeremias,

    entro em contato para dizer que finalizei minha dissertação e gostaria de saber um e-mail seu para que eu possa encaminhar o documento.

    Obrigada,

    Danielle Araújo

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  6. Ola, Danielle! Tudo bem? Que vitória o fim de uma dissertação, ein!? Fico feliz por ter acrescentado de alguma forma... Ansioso por lê-la!!! Segue: tjanjosmed@hotmail.com

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