(Especialmente para Precato, Lincoln, Trololó e Paula Rodrigues)
Após alguns bons dias sem inspiração, mantenho-me sem inspiração alguma.
Valem-me, porém, os grandes gênios que nos salvam com suas grandes obras, já que os limites cognitivos, aliados à pasmaceira ideológico/sentimental/política que me assola, impedem-me de produzir algo que preste.
É nesse contexto descontente que caiu à minha mão este texto de um professor da Universidade de Maringá, o qual compartilho com vocês.
Trata-se de um texto metalinguístico com parafrases do grande George Orwell (lembram da Revolução dos Bichos? E do "Dentro da Baleia"? O mesmo, aliás, já serviu de inspiração para Sá, Rodrix e Guarabira - "...dentro da baleia a vida é tão mais fácil...") Tem também Marx, bíblia sagrada, Paulo Freire, Sartre...
Segue o texto, excelente. Um dos melhores que já li nos últimos 28 anos.
Política
e Literatura
George
Orwell: Por que escrevo
À
Olga Ozaí da Silva,
que
instiga o meu interesse pela literatura,
e
que me orgulha por compartilhar a mesma paixão
ANTONIO OZAÍ DA SILVA
Há
os que escrevem livros que os imortalizam; há os que escrevem diários
que são esquecidos, como as memórias olvidadas no recôndito da
consciência. Alguns escrevem por prazer, outros pela obrigação
curricular – a pressão do Lattes! Uns se dirigem aos leitores
imaginários, outros querem apenas aumentar a folha corrida
para disputar em melhores condições os possíveis concursos e/ou
cumprirem as exigências formais e institucionais. Não há a intenção
de julgamento moral, pois todos somos escravos da competição
desenfreada e da ideologia meritocrática, refiro-me apenas à ênfase
num e noutro caso, até porque não é necessário agir à maneira faustiana
dos que vendem a alma pelas conquistas materiais e título que não
os acompanharão ao final inexorável.
Há
os escritores elitistas que se imaginam gênios em suas torres de
marfim; pensam encarnar a verdade e o mundo se reduz ao próprio
umbigo. Escrevem como se a realidade, o mundo material, não
existisse, mas apenas os conceitos, as categorias universais, o
mundo do intelecto.
Há mesmo os que torcem o nariz diante da hipótese de escreverem
artigos, pois os consideram efêmeros e supõem que os livros
eternizam. Há também os maquiavéis modernos que escrevem
como conselheiros do príncipe de plantão, na ilusão de que este,
ou quem sabe os seus assessores mais próximos, o leiam.
Há,
ainda, os que escrevem para transformar o mundo, palavras que
anunciam utopias e, muitas vezes, encharcadas de um dogmatismo
intolerante, próprio dos que querem salvar o mundo e as almas dos
demais não importa qual o meio. Em tempos de internet, aliás, não
é incomum o proselitismo dos missionários e panfletários que, bem
alimentados e acomodados em suas poltronas à frente do computador,
imaginam fazer a revolução. Em nosso tempo, a tecnologia
potencializa a difusão da mensagem de grupelhos que projetam
redimir a humanidade lançando suas palavras proféticas e apocalípticas
na grande teia que abarca os milhões de computadores. O ciberespaço
reforça o modismo dos manifestos, cuja eficácia é duvidosa mas
fornece a sensação de que “estamos fazendo algo”, apazigua as
consciências e nos oferta uma vitrina para exibir nossos nomes e títulos
acadêmicos. O ciberespaço fomenta uma nova militância e torna
possível até mesmo o “partido do eu”. Bem-vindos à militância
virtual.
A
internet produz a ilusão da “revolução on-line” e propicia
uma espécie de desencargo de consciência, como se a palavra
adquirisse vida própria
no momento em que entulhamos as caixas postais uns dos outros com gigabytes
de arquivos anexos e textos repassados num movimento circular
incessante.
Mas a internet também potencializa as possibilidades dos
intelectuais divulgarem e debaterem as suas idéias; ela democratiza
o meio, ainda que limitado aos que têm acesso, na medida em que
barateia e nos torna menos dependentes dos esquemas editorias
mercadológicos. A despeito das vantagens que oferece, o meio
virtual também têm o seu calcanhar de Aquiles. Como toda
tecnologia, pode ser bem ou mal usada.
O
intelectual engajado, no sentido sartreano, encontra na
internet um campo fértil para a sua militância. Não obstante,
este tipo de engajamento embute o engodo de acreditar no potencial mágico
da virtualidade. Tende a se assemelhar ao típico intelectual
incrustado na torre de marfim. Por outro lado, existe a tendência
ao dogmatismo e à doutrinação. A concepção de mundo do
intelectual engajado tende a ser maniqueísta, dividido entre o bem
e o mal, os amigos e os inimigos. Por isso, a exemplo de Norberto
Bobbio, prefiro a responsabilização do intelectual.
Por
que escrever?
George
Orwell expôs os móbeis que o levaram a escrever e, ao fazê-lo,
nos ofereceu traços autobiográficos. Para ele, este recurso se fez
necessário porque “não se pode avaliar o que move um escritor
sem uma noção de seu desenvolvimento inicial”. A sua formação,
sua história de vida o influenciará. “O assunto será
determinado pela época em que ele vive [...], mas antes de começar
a escrever ele já terá adquirido uma atitude emocional da qual
jamais se livrará de todo”, afirma Orwell (2005: 24).
O
autor de “A Revolução dos Bichos” e “1984”,
relaciona quatro motivos que, em maior ou menor grau, impulsionam a
escrever:
“1.
Puro egoísmo. O desejo de ser engenhoso, de ser comentado, de ser
lembrado após a morte, de se desforrar de adultos que o
desdenharam na infância e por aí afora. É uma falsidade fazer
de conta que este não é um motivo forte” [...]
2.
Entusiasmo estético. A percepção da beleza no mundo externo ou,
de outro lado, nas palavras e em seu arranjo correto. Prazer no
impacto de um som sobre outro, na firmeza de uma boa prosa ou no
ritmo de uma boa história. O desejo de compartilhar uma experiência
é valioso e não se deve deixar escapar. O motivo estético é
muito débil numa porção de escritores, mas mesmo um panfleteiro
ou um escritor de livros didáticos terá palavras e frases
prediletas que lhe agradam por razões não utilitárias [...].
3.
Impulso histórico. O desejo de ver as coisas como elas são, de
encontrar fatos verídicos e guardá-los para o uso da
posteridade.
4.
Propósito político – a palavra “político” entendida aqui
em seu sentido mais amplo. O desejo de lançar o mundo em
determinada direção, de mudar as idéias das pessoas sobre o
tipo de sociedade que deveriam se esforçar para alcançar. Também
neste caso ninguém está verdadeiramente isento de tendências
políticas. A opinião de que a arte não deveria ter a ver com
política é em si mesma uma atitude política” (Id.: 24-25).
Todos
estes impulsos atuam sobre os escritores. A recusa, por exemplo, do
fator “puro egoísmo” é hipocrisia;
se há algo que é comum aos intelectuais é a vaidade. Em alguns
casos, esta chega a ser uma espécie de doença congênita, como
afirmou Max Weber.
O segundo e o terceiro motivos que nos impulsionam à escrita também
são identificáveis, ainda que possam ser inconfessáveis pelos
autores. Orwell (Id.: 25) observa que:
“Pode-se
perceber como esses diferentes impulsos são antagônicos e variam
de pessoa para pessoa, de época para época. Por natureza –
considerando “natureza” o estado a que se chega quando se fica
adulto – sou uma pessoa para quem os três primeiros motivos tem
mais importância do que o quarto”.
Trata-se
da polêmica relação entre literatura e política. É possível ao
escritor se isentar da política? Porém, a politização da
literatura não envolve o perigo do seu empobrecimento estético e
da sua redução à forma panfletária? Nem todo autor politicamente
engajado produz boas obras literárias; por outro lado, autores que
não tiveram a pretensão de escrever romances políticos,
terminaram por nos legar obras essenciais.
Para Irving Howe (1998: 197): “Romancistas comprometidos com temas
políticos não têm necessariamente que chegar a conclusões políticas:
em geral é melhor que não tentem fazê-lo”.
A
política envenena a literatura na medida em que subordina a
criatividade e a necessária autonomia do intelecto às lealdades do
grupo e seus dogmas. “Lealdades de grupos são necessárias, e no
entanto são um veneno para literatura, uma vez que a literatura é
o produto das individualidades”, salienta Orwell (2005: 161). O
escritor vinculado ao partido se torna o servidor e propagandista da
verdade deste; ele é vigiado e se vigia.
Isso significa que ele deve se refugiar em sua torre de marfim e se
abster da política em nome da sua liberdade de expressão? “Temos
então que concluir que é dever de todo escritor “não se meter
em política”?, pergunta Orwell. Sua resposta é taxativa:
“É
claro que não! Como eu já disse, nenhuma pessoa racional pode não
se meter, ou realmente não se mete, com política numa época
como a de hoje [1948]. Apenas sugiro que deveríamos estabelecer
uma distinção mais nítida do que fazemos hoje com nossas
lealdades políticas e literárias, reconhecendo que a disposição
para fazer algumas coisas desagradáveis, mas necessárias,
não acarreta nenhuma obrigação de reprimir as crenças que em
geral as acompanham. Quando se envolve em política, um escritor
deveria fazê-lo como cidadão, como ser humano, e não como
escritor. Não penso que ele tenha o direito, apenas por causa
de suas sensibilidades, de se esquivar do trabalho sujo e
corriqueiro da política”. (Id.: 162).
George
Orwell não admite que em nome da pureza estética, da arte pela
arte, o intelectual se ausente do mundo real e da política.
Nenhum escritor é plenamente apolítico – “E nenhum livro é de
todo neutro” (Id.: 113). O intelectual, ou mais precisamente o
escritor, que se refugia na comodidade do seu reduto cristalino não
está imune à realidade que o cerca – em especial em tempos de
crise política. O seu silêncio e/ou isolamento do mundo real paga
o tributo à aceitação da realidade social, com as suas injustiças
e opressões. A sua posição, mesmo quando reconhece tais circunstâncias,
é não fazer nada; parte do princípio de que é melhor se
resignar. “Mas, numa época como a nossa, será uma atitude defensável?”,
questiona Orwell (Id.: 136).
Orwell
utiliza a metáfora do ventre da baleia para se referir à
atitude quietista dos intelectuais. São os “Jonas” dos tempos
modernos. Leiamos seu argumento:
“Claro
que a criatura que engoliu Jonas era um peixe, e assim foi
descrito na Bíblia (Jonas, 1, 17), mas crianças a confundem com
uma baleia e esse fragmento de linguagem infantil é em geral
transferido para a vida de adulto – um sinal, quem sabe, do
poder que o mito de Jonas exerce sobre a nossa imaginação. Pelo
fato de estar dentro de uma baleia pode ser uma idéia bem confortável,
aconchegante, cômoda. O Jonas histórico, se é possível chamá-lo
assim, ficou muito contente de escapar, mas na imaginação, no
devaneio, inúmeras pessoas o invejaram. É claro que o motivo
para isso é óbvio. As entranhas da baleia são apenas um útero
grande o suficiente para conter um adulto. Lá ficamos, no espaço
almofadado e escuro em que nos encaixamos perfeitamente, com
metros de gordura entre nós e a realidade, capazes de manter uma
atitude da mais completa indiferença, não importa o que
aconteça” (Id.: 135).
Os
“Jonas” do nosso tempo passam a vida na “barriga da baleia”
e recusam compromissos políticos. Como escreve Orwell, “é o estágio
sem igual, definitivo, da irresponsabilidade” (Id.:136). No
entanto, a participação política também acarreta ônus. Eis o
dilema dos intelectuais:
“Trancar-se
numa torre de marfim é impossível e desaconselhável.
Entregar-se subjetivamente, não apenas a uma máquina partidária,
mas a uma ideologia de grupo, é se destruir como escritor.
Entendemos que esse é um dilema doloroso, porque percebemos a
necessidade de envolvimento na política ao mesmo tempo que também
percebemos o quanto ela é uma atividade degradante e sórdida. E
a maioria de nós ainda tem uma crença persistente em que toda
escolha, mesmo política, é entre o bem e o mal, e em que se uma
coisa é necessária é também certa. Penso que devemos nos
livrar dessa crença, que pertence ao universo infantil. Em política,
nada mais podemos fazer do que concluir qual dos males é o menor,
e existem situações das quais só podemos escapar agindo como um
diabo ou um louco (Id.: 163)”.
Por
que escrevo?
Embora
as reflexões de George Orwell se refiram à literatura, aos livros,
elas também contribuem para pensarmos nos dilemas de um simples
escritor de artigos (ele próprio também produziu vários trabalhos
deste tipo, inclusive resenhas e textos jornalísticos).
Orwell
pensa a literatura e a política enquanto um “dilema doloroso”,
mas resguardando a autonomia relativa do escritor. Este é um ser
cindido, dividido entre as exigências do ofício da palavra e seu
compromisso com o mundo real – a não ser que se refugie “dentro
da baleia”. Mas a atuação política não significa escrever para
“fazer cabeças”, “ganhar mentes”. Ela se refere apenas ao
reconhecimento de que a escrita não está isenta de valores políticos
e morais. Não se trata de convencer os outros de que estes valores,
explícitos ou implícitos, sejam os únicos e representem a verdade
absoluta. Diria que escrevo muito mais para me persuadir de que são
válidos. Tenho para mim, ainda mais em tempos de internet, que o
escrito não mais me pertence e que as possíveis interpretações são
tão legítimas quanto o interpretado.
Escrever
é um estímulo à leitura e à dúvida permanente; é um momento
para organizar o pensamento e dialogar com os autores que leio. Ler
e escrever é recompensador pela descoberta incessante de que as
certezas não são eternas e que as incertezas alimentam a mente, na
medida em que nos inspira a percorrer outros caminhos e buscar
respostas que geram outras dúvidas e assim por diante... Escrever
é também se expor, arriscar-se. Daí a necessidade consciente e/ou
inconsciente da autovigilância. Não existe liberdade de expressão
absolta, esta é sempre condicionada pela época e contexto político
e social.
Confesso,
porém, que me alegra – eis o egoísmo! – saber que há leitores
interessados no que escrevo. E sempre vale a pena, ainda que sejam
poucos. Não espero a imortalidade através da escrita, mas me sinto
bem ao saber que o meu esforço para ler e escrever pode contribuir
para despertar o interesse deste ou daquele jovem estudante, das
minhas filhas e de muitos que conheço apenas por email. E, no final
das contas, a imortalidade é uma ilusão, já que, de qualquer
forma, estarei morto.
Não
escrevo com a pretensão de transformar o mundo através das
palavras; estas só são eficazes quando materializadas em força
política – e não milito em partidos nem me sinto na obrigação
de reverenciar grupos políticos. É suficiente que a escrita me
transforme; então, poderei aprender a ser melhor enquanto indivíduo
que atua na sociedade, como pai, professor etc. Se a leitura e a
escrita me fazem melhor, também influenciam o cotidiano e o meu
modo de ser e viver; e me transformando, posso contribuir mais e
melhor com os que convivo. E isso também me ensina que sempre há algo a
aprender com eles...
Assumo,
por fim, que sou apaixonado pelas palavras. E estas não são
neutras, estão carregados de sentidos políticos.
Talvez este seja o mistério que envolve escritor e leitor. Só me
resta agradecer a você por compartilhar estas reflexões.