quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

É bom ler...

Quando fui a Cuba em 2004 fiquei em uma Beca (moradia estudantil) e convivi com estudantes de toda a Latinoamérica por um tempinho curto, mas enriquecedor. Percebi que a visão do estudante, principalmente os de medicina, é algo muito adversa à nossa aqui no Brasil.

Em Cuba parte-se de um preceito básico: estudar não é um simples meio de mudar de classe social ou, como alguns pensam, de garantir um maior rendimento. Não há o pressuposto do Cash. Por isso fica claro, ao conversar com os estudantes do próprio país, que a questão é muito mais vocacional. E isto "contamina" muito quem vai la pra estudar.

A desistência é grande por parte dos estrangeiros bolsistas. Quem vai para um país com as características da Ilha com o coração e a cabeça na ótica neo-liberal sente-se pouco a vontade. Comer com certas regras (simples a comida, porém muito nutritiva) e não ter acesso ao poder de compra tão valorizado em nosso meio são quesitos a serem superados e muitos desistem.

Penso que Cuba é uma aula integral de humanismo. Quem vai pra lá fazer medicina e se permite absorver esse espírito tem, já neste ato, a capacidade de construir uma práxis médica igualmente humana. Li uma vez que "o socialismo é o sonho do humanismo". Em se tratando de medicina poderia dizer agora, vendo ao meu redor tantos colegas vis, que a medicina sem humanismo nada faz além de tratar doenças... o que é muito pouco para uma arte - da qual muitos transformaram em meio para enriquecimento. 

Segue abaixo um texto muito interessante... Continuo defendendo que enquanto os nossos estudantes continuarem se informando por "Vejas", "Willians Bonners" "Estados de Minas" perderemos a chance de aprender um pouco com quem ousou fazer diferente em nome de um país equânime.

Ex-menina de rua de SP estuda Medicina em Cuba

30 de dezembro de 2010

Balaio do Kotscho
Da Revista Brasileiros


Graças a alguns “papa-hóstias”, como costumo chamar meus amigos da igreja,
fiquei sabendo da história dela durante um agradável almoço na Feijoada da
Lana, na Vila Madalena, a melhor da cidade. Repórter vive disso: tem que
andar por aí, conversar com todo mundo para descobrir as novidades, ficar
sabendo de personagens cuja vida vale a pena ser contada.

É este o caso da jovem Gisele Antunes Rodrigues, de 23 anos, ex-menina de
rua de São Paulo, nascida em Ribeirão Pires, que deu a volta por cima e hoje
está no terceiro ano de Medicina. Detalhe: ela estuda no Instituto Superior
de Ciências Médicas de La Habana, em Cuba, onde estão matriculados outros
275 brasileiros.

Gisele veio passar as férias no Brasil e, na próxima semana, volta a Cuba.
Como ela foi parar lá? Ninguém melhor do que a própria Gisele, que escreve
muito bem, para nos contar como é a vida lá e como foi esta sua incrível
travessia das ruas de São Paulo até cursar uma faculdade de Medicina em
outro país.

A meu pedido, Gisele enviou seu depoimento nesta sexta-feira e eu pedi
autorização para poder reproduzí-lo aqui no Balaio. Tenho certeza de que
esta comovente história com final feliz pode servir de estímulo e inspiração
a outros jovens que vivem em dificuldades.

Para: Ricardo Kotscho

Olá!!!

Autorizo o senhor a publicar essa história. Caso deseje, pode corrigir os
erros. Mas, por favor, sem sensacionalismo. Tente seguir mais o menos o
texto abaixo. Desculpa por escrever isso, mas eu já tive problemas.

Gosto do seu blog, vou tentar acessá-lo em Cuba.

Abraços

Gisele Antunes

***

Só mais uma brasileira

Saí de casa com 9 anos de idade porque minha mãe espancava eu e meu irmão.
Não tínhamos comida, o básico para sobreviver. Meu pai nunca foi presente. É
um alcoólatra que só vi duas vezes na vida. Minha mãe é uma mulher honesta,
mas que não conseguia educar seus filhos. Já foi constatado que ela tem
problemas mentais.

Ela trabalhava como cigana na Praça da República. Quando eu fugi de casa
segui esse caminho, e encontrei uma grande quantidade de meninos e meninas
de rua. Apresentei-me a um deles, este me ensinou como chegar em um albergue
para jovens, e a partir desse momento passei a ser menina de rua. Só
comparecia nessa instituição para comer, tomar banho e ter um pouco de
infância (brincar). No meu quinto dia na rua, comecei a cheirar cola e
depois maconha.

Alguns educadores preocupados com a minha situação tentavam me orientar, mas
de nada valia. Foi quando me apresentaram a uma religiosa, a irmã Ana Maria,
que me encaminhou para um abrigo, o Sol e Vida. Passei uns três anos lá e
deixei de usar dogras. Esta instituição não era financiada pelo governo.
Quando foi fechada, me encaminharam a outros abrigos da prefeitura, entre
eles o Instituto Dom Bosco, do Bom Retiro. E assim foi, até os 17 anos.

Para alguém que usa droga, não era fácil seguir regras. Foi por muita
persistência e um ótimo trabalho de vários educadores que eu consegui deixar
a drogas, sair da desnutrição e recuperar a saúde após anemia grave.

Na infância, era rebelde, não queria aceitar a minha situação. Apenas queria
ter uma família. Mas havia algo que eu valorizava _ a escola e os cursos que
eu fazia na adolescência. Aos 14 anos de idade, comecei a jogar futebol,
tive a minha primeira remuneração. Aos 16 anos, entrei em uma empresa, a
Ericsson, que capacitava jovens dos abrigos para o mercado de trabalho. Essa
empresa financiou meu curso de auxiliar de enfermagem e o inicio do técnico.
O último não foi possível concluir.

Explico: existe uma lei nas instituições públicas segunda a qual o jovem a
partir dos 17 anos e 11 meses não é mais sustentado pelo governo, tem que se
manter sozinho. Como eu não tinha contato com a minha família, quando se
aproximou a data de completar essa idade, entrei em desespero.

A sorte foi que a entidade, o Instituto Dom Bosco Bom Retiro, criou um
projeto denominado Aquece Horizonte. Este projeto é uma república para
jovens que, ao sair do abrigo, podem ficar lá até os 21 anos. Os
coordenadores e patrocinadores acompanham o desenvolvimento do jovem neste
período de amadurecimento.

As regras mais básicas da república são: trabalhar, estudar e querer vencer
na vida. No segundo ano de república, eu desejava entrar na universidade,
mas sabia que não tinha condições de pagar a faculdade de enfermagem ou
conseguir passar na universidade pública.

Optei então por fazer a faculdade de pedagogia. É uma área que me encanta, e
a única que podia pagar. No primeiro semestre da faculdade de pedagogia, um
educador do abrigo, o Ivandro, me chamou pra uma conversa e me informou
sobre um processo seletivo para estudar medicina em Cuba. Fiquei contente e
aceitei participar da seleção.

Passei pelo processo seletivo no consulado cubano e estou desde 2007 em
Cuba. Dou inicio ao terceiro ano de medicina no dia 06 de setembro de 2010.
São 7 anos no país, sendo 6 de medicina e um de pré-médico.

Ir a Cuba foi minha maior conquista. Além de aprender sobre a medicina,
aprendo sobre a vida, a importância dos valores. Antes de ir, sempre lia
reportagens negativas sobre o país, mas quando cheguei lá, não foi isso que
vi. Em Cuba, todos têm direito a educação, saúde, cultura, lazer e o básico
pra sobreviver.

Li em muitas revistas que o Fidel Castro é um ditador, e descobri em Cuba,
que ele é amado e idolatrado pelos cubanos. Escrevem que Cuba é o país da
miséria. Mas de que tipo de miséria eles falam? Interpreto como miséria o
que passei na infância. Em casa, não tinha água encanada, luz, comida.

Recordo que tinha dias em que eu, meu irmão e minha mãe não conseguíamos nos
levantar da cama devido a fraqueza por falta de alimento. Tomávamos água
doce pra esquecer a fome. Então, quando abro uma revista publicada no Brasil
e nela está escrito que Cuba é um país miserável, eu me pergunto: se em
Cuba, onde todos têm os direitos a saúde, educação, moradia, lazer e
alimento, como podemos denominar o Brasil?

Temos um país com riqueza imensa, que conquistou o 8º lugar no ranking dos
países mais ricos, mas sua riqueza se concentra nas mãos de poucos, com uns
60 % da população vivendo em uma miséria verdadeira, pior que a miséria da
minha infância.

Cuba sofre um embargo econômico imposto pelos estados Unidos por ser um país
socialista e é criticado por outros governos. No entanto, consegue dar bolsa
para mais de 15 mil estrangeiros de vários países, se destaca na área da
saúde (gratuita), educação (colegial, médio, técnico e superior gratuito
para todos) e esporte (2º lugar no quadro de medalhas, na historia dos Jogos
Panamericanos), é livre de analfabetismo.

A cada mil nascidos vivos morrem menos de 4. Vivenciando tudo isso, eu
queria também que o Brasil fosse miserável como Cuba, como é escrito em
varias revistas. Acho que o brasileiro estaria melhor e não seria tão comum
encontrar tantos jovens sem educação, matando, roubando e se drogando nas
ruas.

Vou passar mais quatro anos em Cuba e não quero deixar o curso por nada.
Desejo concluir a faculdade e ajudar esse povo carente que sonha com
melhoras na área da saúde, quero ajudar outros jovens a realizar os seus
sonhos , como me ajudaram. Também pretendo apoiar meu irmão, que deseja
estudar direito.

Tenho meu irmão como exemplo de superação. Saiu de casa com 13 anos de
idade, mas não foi para uma instituição governamental. Morou em um cômodo
que seu patrão lhe ofereceu. Enquanto eu estudava e fazia cursos, ele estava
trabalhando para ter o pão de cada dia. Hoje, ele é um homem com 25 anos de
idade, casado e tem uma filha linda, e mesmo assim encontra tempo pra me
apoiar e me dar conselhos.

Foi muito bom visitar o Brasil. Depois de longos 13 anos tive um tipo de
comunicação com a minha mãe. Isso pra mim é uma vitoria. Quero estar próxima
dela quando voltar.

Conto um pouco da minha história, mas sei que muitos brasileiros
ultrapassaram barreiras piores, até realizarem seus sonhos. Peço ao povo
brasileiro que continue lutando. É período de eleições, peço também que
todos votem com consciência, escolha a pessoa adequada pra administrar o
nosso país tão injusto.

Gisele Antunes Rodrigues

Ser culto é o único modo de ser livre (José Martí)

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Charges... todas do "www.chargeonline.com.br". Sítio legal demais!












A melhor...

Texto publicado em um Jornal do Sul de Minas, enviado a mim pelo próprio autor, o grande amigo Emílio.


A tomada do “Complexo do Alemão” e a
retomada de um complexo brasileiro

Emílio de Oliveira e Silva*

            A recente tomada do “Complexo do Alemão” na cidade do Rio de Janeiro vem sendo comemorada como uma data histórica na qual forças policiais e militares brasileiras subjugaram dezenas de traficantes, apreendendo expressiva quantidade de armas e drogas.
De fato, a mobilização estatal para combater os ataques de uma facção criminosa foi aplaudida pela sociedade fluminense que, acuada pelo medo, anseava pelo fim da violência. Restou à imprensa realizar ampla cobertura da ação policial, acompanhando por terra e ar a invasão de um território que era dominado há décadas por traficantes de drogas, no que poderia ser a continuidade do filme de José Padilha: “Tropa de Elite III”.
Algumas reflexões podem ser feitas a partir desses fatos.
A primeira observação traduz-se em uma correção daquilo que vem sendo chamado de “Retomada do Complexo do Alemão”. Do ponto de vista semântico, retomada é o ato de tomar novamente; reaver; recuperar o que já foi dominado. Nesse sentido, o referido morro carioca jamais esteve sob a autoridade do Estado que não se fez presente em momento algum, deixando de oferecer saúde, educação, lazer, moradia e segurança à população daquele lugar. Provou-se que nem a polícia, braço armado do poder público, entrava ali. Portanto, é ilógico falar em “retomada” daquilo que nunca esteve sob domínio.
Outra questão é o receio de que a enérgica atuação das forças militares e policiais neste momento transmita a ideia de tranquilidade e segurança, propiciando um natural desleixo estatal em um estágio posterior à ocupação do “Complexo do Alemão”. Caso isso ocorra, a inércia do Estado ensejará a troca dos algozes de aproximadamente quatrocentos mil habitantes da periferia, pois a dominação dos traficantes será substituída pelo controle corrupto da “milícia” carioca.
Por fim, constata-se que a grande mídia vem desviando o foco do grave problema vivenciado no Rio de Janeiro que também se extende por todo Brasil. Até o momento, a única preocupação que tem repercutido nos meios de comunicação é o incremento da repressão criminal e a supressão de garantias constitucionais, como se isso fosse suficiente para a resolução dos males causados pelo tráfico de drogas. Esse diagnóstico, na melhor das hipóteses, é ingênuo e camufla um discurso populista desinteressado com políticas públicas eficazes que possam transformar a realidade social, condição imprescindível para oferecer dignidade às pessoas menos favorecidas economicamente.
Nesse contexto, a insensatez foi estampada nas manchetes de jornais que mais destacaram o aparato bélico utilizado na operação policial do que a situação de miséria e penúria vivida por milhares de famílias, as quais, não raras vezes, foram vítimas das arbitrariedades cometidas pelas forças de segurança durante a ocupação do morro carioca.
 Lamentavelmente, perde-se uma grande oportunidade para se travar um debate sério, aberto e democrático sobre as causas reais da violência. Assim, mais uma vez a atuação do poder público torna-se paliativa, postergando a resolução dos problemas que, certamente, retornarão ou serão deslocados para lugares distintos.
A tomada do “Complexo do Alemão” denunciou a incapacidade do Estado de propor medidas adequadas, previamente debatidas com segmentos da sociedade civil, que visem resolver os problemas nacionais na sua raiz. Isso, aliás, retoma um complexo antigo dos governantes brasileiros: oferecer mais do mesmo para que tudo continue como está!


* Delegado de Polícia Civil de Minas Gerais. E-mail para contato: emiliooliveira@hotmail.com

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

Matéria do Brasil de Fato... um outro olhar sobre a "Libertação do Complexo do Alemão"

Nós e o senhor das moscas

O Rio de Janeiro é esse campo onde reina “o senhor das moscas”, uma espécie de pedaço do campo geral que é o mundo capitalista
1º/12/2010

Elaine Tavares

Dias desses vi na televisão um filme que já havia assistido nos anos 90 e quem naqueles dias, já me causara profunda tristeza. Chama-se “O senhor das moscas” e mostra um grupo de crianças perdidas numa ilha, depois da queda de um avião, fugindo da guerra. Na ilha, sozinhos, eles têm de se organizar e aí aparecem todos os estereótipos do humano. O ditador, o herói, os elementos da democracia, o misticismo fundamentalista, a ciência, os covardes, os perdidos, os fracos, o selvagem. A película é inspirada em um livro do mesmo nome escrito na década de 50 que, em tese, tenta mostrar o quanto o ser humano carrega dentro de si o germe da corrupção. E aí não se trata desta corrupção que vemos na TV quando um suborna o outro, mas a corrupção existencial, essa que torna um garoto normal e educado num ser sem qualquer sentimento ou moral: um selvagem, na acepção mais crua da palavra.
O senhor das moscas tenta mostrar que há algo de podre no humano que, cedo ou tarde se manifesta, como já havia ousado propor George Orwell, no Revolução dos Bichos. Mas, ao mesmo tempo também aponta a presença do humano justo, digno, bondoso e capaz de conviver com o diferente. Este, ao longo do filme, em que um deles vai assumindo o controle de todos os garotos pelo medo e pela força, vai ficando sozinho. Até ao ponto de ser caçado por todo o grupo, que comandado pelo chefe, se dispunha a eliminar o menino que ousava instituir uma vida de liberdade e respeito pelo outro, nas suas debilidades e belezas.
É uma experiência dolorosa que só acaba com o quê? Com a chegada da força, vinda de fora. O exército libertador.
Por algum motivo esse filme me faz pensar no que acontece no Rio, hoje. Por viver tão longe, não me sinto muito capaz de fazer uma boa análise dos fatos. Há tantas variáveis a considerar. O tráfico, duro e cruel, a ganância imobiliária que quer as terras dos morros, a violência da polícia, a corrupção, a ausência completa do Estado nas áreas de favela, os barões da droga que estão no asfalto, enfim... tanta coisa, e outras mais fora do meu olfato. Mas, de alguma forma vejo cada um daqueles meninos do “senhor das moscas” se expressando no turbilhão de notícias e opiniões sobre as ocupações dos morros cariocas, dentro do grotesco “espetáculo” montado pelas emissoras de televisão.
A ascensão dos chefetes das drogas nas comunidades empobrecidas não é coisa que brota do nada. É fruto de toda a omissão do estado burguês diante das promessas que faz. Não há saúde, não há escola, não há lazer, não há vida. O capitalismo suga todas as forças dos trabalhadores e os joga uns contra outros. O povo se vira como pode, equilibrando-se na corda bamba entre a lei e o tráfico. E, aí, assomam todos os tipos de seres: os bem intencionados, os heróis, os selvagens, os fracos, os bondosos, os medrosos, etc... Mas, como bem analisa o professor Nildo Ouriques, o povo é sábio e só sobrevive porque sabe avaliar a correlação de forças do espaço onde vive. Ninguém quer viver sob o terror dos soldados do tráfico, mas tampouco quer a presença de uma polícia corrupta, racista e violenta. É um fogo cruzado que nunca pára.
Hoje a polícia ocupa o morro e a TV expõe as gentes a celebrar o fim de um tipo de opressão. Mas e amanhã, quando o tempo passar, e as câmeras se voltarem para outro tema? E se a polícia sair? E se o Estado não cumprir de novo com suas promessas? E se voltar o terror do tráfico? E se o Estado não agir no espaço dos chefes graúdos, os que vivem no asfalto? Há uma coisa que se chama sobrevivência. As pessoas querem seguir suas existências, de alguma forma, e de preferência bem. Como viveram até hoje, sem o Estado e sem a polícia? Porque são sábias e vergam tal qual o feixe, ao sabor do vento. Se não fosse assim não estariam vivas.
Mas, e amanhã, quando com as UPPs todos os morros estiverem livres da força do tráfico, se as empresas de turismo quiserem os terrenos onde vivem as gentes para ganhar dinheiro durante as festas das olimpíadas e da copa? Haveremos de ter a mídia aliada ao povo do morro? Haveremos de ver os comentaristas das redes nacionais defendendo as “pobres” famílias das favelas? Não! Não veremos. Será uma outra batalha a ser travada tal qual a do personagem do filme do senhor das moscas. Uma solitária batalha contra o capital, e aí não haverá um exército libertador. Pelos menos não um de fora.
A história dos empobrecidos é uma recorrente história de perdas. Coisa poderosa demais. Os de baixo estão sendo sempre colocados diante de suas derrotas, em todas as grande batalhas que travam por vida digna e farta para todos. A força do poder solapa e arrasa, fazendo com que as pequenas vitórias se desfaçam nas brumas. Isso cria uma atmosfera de profunda impotência. E não deveria ser assim. Se o povo empobrecido decidisse tornar-se quem é, as coisas seriam diferentes. Mas, para isso haveria que se despertar a consciência de classe, sair da emergência, da difícil tarefa de manter-se com a cabeça para fora do lodo mortal da sobrevivência cotidiana no reino do capital. Tanto trabalho a ser feito, tanto suor, quase um trabalho de Hércules.
O Rio de Janeiro é esse campo onde reina “o senhor das moscas”, uma espécie de pedaço do campo geral que é o mundo capitalista. No filme, é a cabeça de um porco que representa o mítico, o poder, a força, o símbolo de algo intangível, inalcançável, a coisa etérea que mantém todos os meninos sob um domínio incapaz de se desfazer. Vejo esse símbolo, agora, na caveira do BOPE. Em volta dela arma-se toda essa “festa” de libertação do morro. Mas o que esperar de uma força que tem a caveira como símbolo? Já bem disse Muniz Sodré num recente artigo sobre os fatos. Esta não é uma luta dos bonzinhos contra os malvados. Há tantos lados e tantas variáveis nestas personagens.
O Brasil vive nestes dias uma espécie de euforia desenvolvimentista. Desde o segundo governo Lula as obras do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) estão se espalhando por vários cantos do país, como um símbolo da melhora da vida. Mas, muitas destas obras são questionáveis, não representam soluções reais para os problemas. Alguns, elas até aprofundam. Ainda assim, incensa-se sem sendo crítico. Agora, com o pré-sal, mais uma onda de “melhoras” deve atingir o país. Dinheiro do petróleo vindo aos borbotões. Para quem? Até onde esta onda alcançará as gentes simples? Receberão migalhas ou participarão do banquete, como convidadas? Garantirão aos milhões de jovens deste país a possibilidade da vida digna? Ou terão eles que enfrentar o “senhor das moscas”, como sempre foi?
Não sei. Tudo está aberto. Os meninos armados que hoje servem ao tráfico – urdido muito além dos morros empobrecidos – precisam de muito mais do que promessas. Precisam ver as coisas boas acontecendo com eles todos os dias, precisam se saber parte de uma sociedade justa e livre, na qual terão a chance de construir em pé de igualdade. Há uma cena no filme “o senhor das moscas” que me parece bem paradigmática das coisas que vivemos como seres humanos. O garoto “rebelde” está sendo caçado pelo grupo, o chefete quer a sua morte. Ele corre pela selva e se depara com um incêndio. Está acuado, sem saída. Então, dois dos garotos, que foram cooptados pelo líder ditador, o vêem sob uma árvore, quase sendo tocado pelo fogo. Eles estacam, atônitos. O chefe grita: “estão vendo algo?” E eles, olhando fixo nos olhos do menino, respondem, depois de um longo silêncio: “não”. É quando o garoto consegue fugir em direção à praia. Por um minuto, o sentimento de solidariedade e o desejo da liberdade se fazem parceiros. É a otimista mensagem do autor que, apesar de destacar o tempo todo a vileza e a capacidade de destruição que existe no humano, mostra que é possível, num átimo, tudo se transformar. E, claro, isso não se dá por magia, mas por uma profunda compreensão sobre o que, afinal, está em jogo.
No filme, os garotos entendem que algo está errado e procuram fazer algo para mudar. E nós, aqui, agora? Haveremos de continuar rendendo cultos ao senhor das moscas?