Em breve, Raimundo.
Os Três Mal-Amados
A fala de JOÃO:
Olho Teresa. Vejo-a sentada aqui a
meu lado, a poucos centímetros de mim. A poucos centímetros, muitos quilômetros.
Por que essa impressão de que precisaria de quilômetros para medir a distância,
o afastamento em que a vejo neste momento?
Olho Teresa como se olhasse o retrato
de uma antepassada que tivesse vivido em outro século. Ou como se olhasse um
vulto em outro continente, através de um telescópio. Vejo-a como se a cobrisse
a poeira tenuíssima ou o ar quase azul que envolvem as pessoas afastadas de nós
muitos anos ou muitas léguas.
Posso dizer dessa moça a meu lado que
é a mesma Tereza que durante todo o dia de hoje, por efeito do gás do sonho,
senti pegada a mim?
Esta é a mesma Teresa que na noite
passada conheci em toda intimidade? Posso dizer que a vi, falei-lhe, posso
dizer que a tive em toda a intimidade? Que intimidade existe maior que a do
sonho? a desse sonho que ainda trago em mim como um objeto que me pesasse no
bolso?
Ainda me parece sentir o mar do sonho
que inundou meu quarto. Ainda sinto a onda chegando à minha cama. Ainda me
volta o espanto de despertar entre móveis e paredes que eu não compreendia
pudessem estar enxutos. E sem nenhum sinal dessa água que o sol secou mas de
cujo contacto ainda me sinto friorento e meio úmido (penso agora que seria mais
justo, do mar do sonho, dizer que o sol o afugentou, porque os sonhos são como
as aves não apenas porque crescem e vivem no ar).
Teresa aqui está, ao alcance de minha
mão, de minha conversa. Por que, entretanto, me sinto sem direitos fora daquele
mar? Ignorante dos gestos, das palavras?
O sonho volta, me envolve novamente.
A onda torna a bater em minha cadeira, ameaça chegar até a mesa. Penso que, no
meio de toda esta gente da terra, gente que parece ter criado raízes, como um
lavrador ou uma colina, sou o único a escutar esse mar. Talvez Teresa...
Talvez Teresa... Sim, quem me dirá
que esse oceano não nos é comum?
Posso esperar que esse oceano nos
seja comum? Um sonho é uma criação minha, nascida de meu tempo adormecido, ou
existe nele uma participação de fora, de todo o universo, de sua geografia, sua
história, sua poesia?
O arbusto ou a pedra aparecida em
qualquer sonho pode ficar indiferente à vida de que está participando? Pode
ignorar o mundo que está ajudando a povoar? É possível que sintam essa
participação, esses fantasmas, essa Teresa, por exemplo, agora distraída e
distante? Há algum sinal que a faça compreender termos sido, juntos, peixes de
um mesmo mar?
Donde me veio a ideia de que Teresa
talvez participe de um universo privado, fechado em minha lembrança? Desse
mundo que, através de minha fraqueza, compreendi ser o único onde me será
possível cumprir os atos mais simples, como por exemplo, caminhar, beber um
copo de água, escrever meu nome? Nada, nem mesmo Teresa.