terça-feira, 27 de janeiro de 2015

Justiça a outro Mal-Amado.

Justiça a João!
Em breve, Raimundo.


Os Três Mal-Amados

A fala de JOÃO:

Olho Teresa. Vejo-a sentada aqui a meu lado, a poucos centímetros de mim. A poucos centímetros, muitos quilômetros. Por que essa impressão de que precisaria de quilômetros para medir a distância, o afastamento em que a vejo neste momento?

Olho Teresa como se olhasse o retrato de uma antepassada que tivesse vivido em outro século. Ou como se olhasse um vulto em outro continente, através de um telescópio. Vejo-a como se a cobrisse a poeira tenuíssima ou o ar quase azul que envolvem as pessoas afastadas de nós muitos anos ou muitas léguas.

Posso dizer dessa moça a meu lado que é a mesma Tereza que durante todo o dia de hoje, por efeito do gás do sonho, senti pegada a mim?

Esta é a mesma Teresa que na noite passada conheci em toda intimidade? Posso dizer que a vi, falei-lhe, posso dizer que a tive em toda a intimidade? Que intimidade existe maior que a do sonho? a desse sonho que ainda trago em mim como um objeto que me pesasse no bolso?

Ainda me parece sentir o mar do sonho que inundou meu quarto. Ainda sinto a onda chegando à minha cama. Ainda me volta o espanto de despertar entre móveis e paredes que eu não compreendia pudessem estar enxutos. E sem nenhum sinal dessa água que o sol secou mas de cujo contacto ainda me sinto friorento e meio úmido (penso agora que seria mais justo, do mar do sonho, dizer que o sol o afugentou, porque os sonhos são como as aves não apenas porque crescem e vivem no ar).

Teresa aqui está, ao alcance de minha mão, de minha conversa. Por que, entretanto, me sinto sem direitos fora daquele mar? Ignorante dos gestos, das palavras?

O sonho volta, me envolve novamente. A onda torna a bater em minha cadeira, ameaça chegar até a mesa. Penso que, no meio de toda esta gente da terra, gente que parece ter criado raízes, como um lavrador ou uma colina, sou o único a escutar esse mar. Talvez Teresa...

Talvez Teresa... Sim, quem me dirá que esse oceano não nos é comum?

Posso esperar que esse oceano nos seja comum? Um sonho é uma criação minha, nascida de meu tempo adormecido, ou existe nele uma participação de fora, de todo o universo, de sua geografia, sua história, sua poesia?

O arbusto ou a pedra aparecida em qualquer sonho pode ficar indiferente à vida de que está participando? Pode ignorar o mundo que está ajudando a povoar? É possível que sintam essa participação, esses fantasmas, essa Teresa, por exemplo, agora distraída e distante? Há algum sinal que a faça compreender termos sido, juntos, peixes de um mesmo mar?

Donde me veio a ideia de que Teresa talvez participe de um universo privado, fechado em minha lembrança? Desse mundo que, através de minha fraqueza, compreendi ser o único onde me será possível cumprir os atos mais simples, como por exemplo, caminhar, beber um copo de água, escrever meu nome? Nada, nem mesmo Teresa.



Um comentário:

  1. NA ESPERANÇA DE TEUS OLHOS
    [Vinicius de Moraes]
    Eu ouvi no meu silêncio o prenúncio de teus passos
    Penetrando lentamente as solidões da minha espera
    E tu eras, Coisa Linda, me chegando dos espaços
    Como a vinda impressentida de uma nova primavera.
    Vinhas cheia de alegria, coroada de guirlandas
    Com sorrisos onde havia burburinhos de água clara
    Cada gesto que fazias semeava uma esperança
    E existiam mil estrelas nos olhares que me davas.
    Ai de mim, eu pus-me a amar-te, pus-me a amar-te mais ainda
    Porque a vida no meu peito se fizera num deserto
    E tu apenas me sorrias, me sorrias, Coisa Linda
    Como a fonte inacessível que de súbito está perto.
    Pelas rútilas ameias do teu riso entreaberto
    Fui subindo, fui subindo no desejo de teus olhos
    E o que vi era tão lindo, tão alegre, tão desperto
    Que do alburno do meu tronco despontaram folhas novas.
    Eu te juro, Coisa Linda: vi nascer a madrugada
    Entre os bordos delicados de tuas pálpebras meninas
    E perdi-me em plena noite, luminosa e espiralada
    Ao cair no negro vórtice letal de tuas retinas.
    E é por isso que eu te peço: resta um pouco em minha vida
    Que meus deuses estão mortos, minhas musas estão findas
    E de ti eu só quisera fosses minha primavera
    E só espero, Coisa Linda, dar-te muitas coisas lindas...

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